Crônica em foco
CIDADANIA À PROVA
Edgar Moreno
Herculano vestiu sua melhor roupa. Penteou bem os poucos cabelos, grisalhos e limpos, apalpou a barba bem feita, arrumou a botina e saiu pela Rua da Assembléia de Deus, chamada ainda Maranhão Sobrinho, que um dia foi da Bacabeira. O andar calmo e senil sob os óculos grossos o denunciava um homem de leitura, um nobre-cidadão, desses que se parecem com nosso velho poeta Raimundo Sérgio de Oliveira. Caminhou até a Rua da Forquilha, onde dobrou nos rumos do centro, jogou no lixo uma das páginas do jornal de cujo assunto trazia aborrecimentos: a política, justo naqueles dias em que o seu candidato não conseguira se eleger. Não era nenhuma paixão, nem paga de favor, mas apenas vontade de mudança. Mas era preciso tocar a vida adiante. E deixou-se levar por uma ideia súbita. Pegou de volta a página do chão por dois motivos de pura cidadania: lugar de lixo é no lixo e o se “desdeixar” abater por uma derrota. Viu no jornal a relação dos eleitos, avaliou os nomes, as promessas de campanha, os representantes locais dos próximos quatro anos... Foi tudo o que precisou para seu fortalecimento cidadânico. Foi ter à casa do mais próximo dos eleitos. Esperou um bom tempo à campainha, e, a propósito de sua ideia e capricho ficou ali, perseverante até aparecer uma magra criatura: “Bom dia! O senhor Deputado está?”—perguntou ele, vendo ainda o político sumindo. E a mulher, surpreendida por esse ato flagrante e cortês, não pôde deixar de dizer a verdade: “Está.” Não era isso que ia falar, mas sim que o Deputado estava para a capital tratando de negócios. Ia ela já adentrando o casarão, mas voltou-se para pedi-lo que sentasse. Sentou-se. Esperou, como de praxe, até que lhe veio o deputado: “O senhor por aqui, seu Herculano!?” “Sim, eu vim parabenizar o nosso deputado.” “Oh! Obrigado! E obrigado também pelo seu voto.”—disse o político cheio de si. “Mas eu não votei no senhor!” O semblante do magnata alterou-se. Ia perguntar ao velho o que então o trazia ali. Achou-o ousado. Ia expulsá-lo dali, mas envergonhou-se de si e de sua pretendida ação. Preferiu fingir: “Então, diga, meu caro!” “Eu só vim aqui pegar um panfleto de campanha.” “Ora, seu Herculano, não me diga que está falando sério!”—riu-se irônico o deputado reparando nos modos do idoso. Estaria louco? E o idoso lúcido: “Pois creia: é somente isso que quero... por agora.” E o político não podendo se conter: “Pois me diga: Por que panfleto agora se a eleição já passou?” — arrependeu-se do que disse, mas não podia mais anular. E procurando consertar: “Ah! já sei, o senhor vai guardar de lembrança, não é?” E seguiu cabreiro de si e do outro: “Vamos ver se ainda temos algum perdido por aqui, pois na véspera do dia 4 de outubro, foi feito um derrame deles pelas ruas”— aí o deputado falava verdade, mas Herculano preferiu o silêncio e a ação dele. Logo mais volta um serviçal com alguns santinhos do deputado enquanto este espreitava o idoso e lhe entregava o pedido. “O que eu quero não é desses, mas daqueles que contêm suas propostas.” “Que propostas? Ah! sim, claro”—disse o deputado lembrando que não tinha formalizado, ele mesmo, suas propostas, apenas sua equipe tinha redigido, impresso e entregue aos panfleteiros. E com um olhar dissimulado de desculpa: “Perdão, seu Heculano, como já lhe disse, foi feito um derrame deles na véspera das eleições, mas eu vou ver o que faço...” Procurou no escritório, buscou junto à família, vasculhou a casa inteira, estressou-se com o serviçal, ligou para o assessor de campanha. E, compondo-se do vexame, voltou a falar com o visitante: “Seu Herculano, quero mais uma vez lhe pedir desculpas, mas não foi possível encontrar nenhum panfleto com minhas propostas. Sabe como é esse povo que trabalha em campanha, né... desorganizado... Mas já liguei para meu assessor. Dá para o senhor passar aqui amanhã?” “Dá não senhor, prefiro aguardar o assessor. Amanhã tenho este mesmo compromisso com outros candidatos eleitos.” E o deputado a controlar-se: “Pois aguarde, que vou apressar a vinda do assessor com o panfleto.” Saiu em particular, e, já pensando nas próximas eleições, ligou de verdade para o assessor e foi fazer algumas ligações a outros candidatos eleitos, afinal é melhor prevenir a visita de um intruso a tolerar dele um momento de “cidadania à prova”, coisa que não se deve desejar nem mesmo ao pior dos inimigos.