Costa Filho, literato bacabalense |
Naquele dia Agamenon acordou
tarde. Olhou-se no espelho. Estava mais velho, porém disposto. Era como se
tivesse dormido uma eternidade. Cada um tem sua eternidade. E a dele ia fazer uns
dois meses. Nem supermercado, nem teatro, nem lugar algum, só em casa, nessa
ele se permitia ficar, manhã, tarde e noite. Até o jornaleiro tinha despachado
por um tempo. Queria isolar-se na sua chácara. Queria dias longos e noites bem
dormidas. Queria fazer de cada dia de sua vida, uma eternidade com qual já se
habituara. Como de costume, quase não deixava seu ninho. Seu confortável ninho.
Não precisava deixá-lo. Adorava sua própria companhia. Além do mais tinha
consigo Carlindo e Joana, um amável casal de serviçais que, morando nos fundos,
lhe cuidavam e lhe faziam boa companhia. Vivia no conforto e podia ter tudo o
que quisesse, mas preferia a tradição. Detestava as redes sociais e por
extensão, as tecnologias, até o mais óbvio: a televisão. Até o radinho de ondas curtas perdeu a voz. A
vez agora era dele, com sua vida peculiar. Ultimamente, se isolara mais ainda
do mundo exterior, socando-se nos seus livros de papel e nos seus escritos sem
fim. Tudo naturalmente. Essa era uma escolha que o deixava feliz.
Agora acordara uma vez mais, e já
não sabia nada do mundo, nem sobre as notícias recentes. Não sabia de nada lá
fora, nem tinha pressa por isso. Sua única pressa e notícias que o interessavam
naquele momento estava na caixa postal do correio e nas cartas que mais tarde
iria postar. Vestiu-se como um inglês e
saiu em seu calhambeque, repleto mais de zelo e estilo, do que de ostentação,
logo, isso não o envaidecia. Não era nada, além do que o usufruto de sua vida
de trabalho na juventude.
Saiu rua a fora. O primeiro
impacto estava na primeira esquina, na segunda, na terceira, em todas as
esquinas. E continuava o suspense, nas ruas vazias, nas portas cerradas, nos
sobrados tristes, na cidade fantasma. Os semáforos reclamavam o movimento
infernal dos veículos e transeuntes a disputar um mesmo espaço; os
consultórios, cafés, shoppings, parques e paradas jaziam sozinhos e calados.
Não tinha o artista de rua, nem o vendedor de balas, não havia ricos, nem
mendigos nas calçadas, nem nas praças. Apenas achou normal, mas um normal
anormal. E continuou seu caminho já de volta. Numa esquina cruzou com um
veículo cheio de pessoas com roupas brancas parecidas enfermeiras e médicos. E
lá mais longe uma ambulância ia lhe passar ao meio, se o sinal não abrisse
logo. Aí foi que não quis perguntar mesmo. E não tinha mesmo a quem perguntar.
Era tudo um cenário ermo, enigmático, mas
sobretudo, estranho. Aquilo havia de ser ilusão, um sonho, qualquer coisa, menos
uma verdade. Mas a verdade logo veio se comprovar quando uma viatura lhe passou
averiguando os modos e lhe acusando com um olhar repreensível. Estranhou que os
homens da lei lhe parecessem uns terroristas, pois levavam no rosto uma espécie
de capuz curto. Pela primeira vez, teve medo. Manteve a serenidade. Seguiu,
agora mais intrigante. Na agência do correio, aonde ia, se estampava fechada, e
as portarias e vitrines sem os costumeiros guardas. Começou a perceber que os
órgãos públicos, e as escolas, e as autarquias, e o setor privado, e o comércio
e a indústria, estavam com a mesma cara do correio: triste e vazia. Agora se lembrava
que as pouquíssimas pessoas que vira pelo caminho, algumas delas eram também como
que terroristas à paisana. Não parou para perguntar nada, nem à moça que
limpava um corrimão de escada em sua varanda. Em outras varandas e cozinhas
americanas, viu pessoas a lavar as mãos e outras ainda a esfregá-las pelas ruas
e jardins.
Estrada da Bela Vista em quarentena, marc./ 2020 |
Sem cartas da caixa postal e com
as mesmas cartas que levou, volveu o caminho de volta à chácara. Apesar de ser
um dia enxuto e lindo, lhe parecia o mais bizarro de todos os seus dias. E era.
Não se viam mais por ali crianças dantes catando flores, nem jovens e guris jogando
pelada, nem mesmo os passantes de suas obrigações, só uma pessoa e outra na
janela, isolada, e alguns velhos nas portas a jogar baralho e a falar qualquer coisa
mortal ouvida na televisão. E seguiam no seu jogo, entre a vida e a morte com
as cartas passando de mão em mão.
Não quis saber disso. Seguiu ao
seu ninho. Adentrou seu recinto bucólico. Sentiu o sossego e a segurança de sua
morada. Lembrou que tinha tevê. Correu direto a ela. Logo ouviu uma notícia que
lhe fez lembrar do cenário deserto da cidade. Andou por todos os canais,
nacionais e estrangeiros. A mesma coisa, a mesma notícia a correr o mundo.
Da cozinha vieram, apavorados, Carlindo
e Joana com um radinho na mão:
— Sinhô Agá precisa ir lavar as mãos.
— Já andei sabendo disso, Joana!
— E também ficar em casa.
— Carlindo, “Gratias ago Deo”, temos
como ficar em casa.
Precavido, Agamenon se asseou como
dito na tevê, pegou caneta e papel, pediu mingau de aveia e encarcerou-se em sua
própria casa, no seu arejado escritório, de onde nunca deveria ter saído.
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(Costa Filho, "Sexta te conto", 2020,
mar. 27)